No final de agosto de 2024 Grace - único álbum que Jeff Buckley lançou enquanto caminhava nesta terra - completou 30 anos. Não é apenas uma data, é um marco na minha vida. Sou uma destas pessoas esquisitas cujo encontro com um álbum musical mudou tudo e esse álbum foi o Grace.
Aconteceu em 1998, eu tinha 16 anos, meu avô havia morrido e a nuvem negra do fim da adolescência havia chegado. Encontrei Grace na única loja de cds de Pato Branco, que ficava ao lado da clinica de fisioterapia que fazia para o problema motor que tenho na mão esquerda. Na loja existia uma sessão de discos que ninguém queria ou conhecia e lá estava o álbum por meros R$ 6,90. Nessa época, no interior do Paraná, minha única referencia musical era a revista (Show)bizz e foi lá que li pela primeira vez sobre o dia que Jeff Buckley foi nadar de botas num afluente do rio Mississipi e nunca mais voltou. Era tudo o que sabia sobre o cantor e foi o bastante para comprar o álbum.
Grace não era um álbum fácil (ainda não é), não se parecia com musica para jovens, parecia mais com o House of hollys do Led Zeppelin, música de 25 anos atrás. Tinha um espirito de música gospel que eu não conseguia decifrar e que confunde as pessoas até hoje. Mas devido as circunstancias do momento pareceu predestinado a ser o álbum que seria meu companheiro para os anos que me restavam na escola. Com Jeff fiz um monte de amigos sendo a única pessoa com aquele álbum num raio de 300Km. Era só apresentar “last goodbye” para as meninas e “eternal life" para os meninos. Também sofri as maiores desilusões amorosas, uma delas foi quando a menina que eu gostava não gostou de Grace. Como consolo anos depois uma namorada que amava Jeff Buckley roubou uma das cinco cópias do álbum. Por um breve período eu fui como o personagem de Mel Gibson em Teoria da Conspiração comprando todas as edições de Grace que encontrava por ai.
Grace foi a porta de entrada para musicas menos convencionais, foi por esse caminho que adentrei no rock de adulto que cheguei em Cure for pain do Morphine. Também descobri the bends do Radiohead e soup - segundo álbum do Blind Melon - um dos discos que mais amo na vida (sério). Mas principalmente Grace abriu a porta para o universo de cantores menos famosos dos anos 70, algo que viraria minha obsessão nos anos 2000. Também foi nessa época do final da adolescência que comecei arranhar minhas primeiras canções e queria ser dramático como Jeff, mas infelizmente descobri que tudo soava como um pastiche de Legião Urbana sem a voz dele.
Com o passar dos anos fui colecionando, distribuindo informações e muitas canções obscuras de Jeff Buckley. O culto só tem crescido alimentado por um monte de discos póstumos que hoje são facilmente encontrados no streaming, mas sei lá, as vezes sinto um pouco de ciúmes de algo que por um período parecia ser “só meu”. Acontece.
Quem ouve as canções de Jeff Buckley pode acabar achando que o homem era uma pessoa solitária, triste e assombrada pelo fantasma do pai. Mas pra mim existiram dois Jeff Buckleys. Existia o poeta que escrevia canções como “Lover, You Should’ve Come Over” e “The Sky Is A Landfill”. Mas havia também o artista espirituoso e divertido que conseguia cantar “Last Goodbye” e “Ace Of Spades” (do Motorhead) em um mesmo show, emendar “eternal Life” com “kick out the jams” do MC5. Jeff ainda contava piadas sobre musica e cultura pop, imitava cantores e cantoras de forma bizarra e fazia todo mundo rir junto, para logo depois tocar Grace - uma canção que fala sobre amor, morte e vida eterna.
Playlist: 10 canções sobre Jeff Buckley
10) “I Never Asked To Be Your Mountain”
Jeff sempre evitou falar de Tim Buckley com intimidade, raramente se referia a ele como pai. Chegou a dizer em uma entrevista que não conseguia tecer opinião sobre alguém que conheceu em uma semana na vida. Como reflexo do distanciamento, Jeff nunca gravou nada de seu pai oficialmente. No inicio da carreira musical quando ainda era o guitarrista de uma banda obscura, evitava cantar para fugir das comparações obvias. Foi assim até aceitar interpretar essa canção em um show-tributo a Tim. Foi a partir dessa canção que jeff foi incentivado a se lançar como cantor. Vale lembrar que Tim Buckley morreu com 29 anos de idade, de overdose; Jeff aos 30, afogado (sem qualquer vestígio de drogas ou outras substâncias na corrente sanguínea, embora no dia anterior fora diagnosticado com transtorno bipolar de humor).
9) “Je N'en Connais Pas Le Fin”
"Je N'en Connais Pas Le Fin” é uma daquelas canções que Edith Piaf eternizou. É difícil imaginar disco mais perdido no mundo do que Live At Sin-é, de 1993. Um pequeno EP de quatro faixas, duas delas covers, foi lançado no final do ano, logo após Jeff ser contratado pela grande gravadora Columbia (hoje Sony BMG). Jeff sempre teve mais afinidade com divas do jazz do que com astros do rock. Em 1994, com Kurt Cobain se matando e o tacho do grunge sendo raspado, Jeff Buckley gravava Grace produzido por Andy Wallace, o cara que mixou Nevermind.
8) “Beneath The Southern Cross”
Patti Smith estava há mais de 15 anos sem gravar. Praticamente desde que encontrou o amor nos braços de Fred “Sonic” Smith, lendário guitarrista, do MC5 não precisou de mais nada para expressar seu amor. Mas em 1994, com a morte de Fred (e logo após de um irmão dela), no ano seguinte Patti voltava a gravar. O álbum Gone Again foi lançado em 1996 e traz Jeff Buckley fazendo vozes, tocando guitarras e instrumentos indianos. Jeff viria morrer no ano seguinte, 1997.
7) “Song To The Siren”
Uma canção obscura de Tim Buckley. Uma das mais belas gravações do Cocteau Twins e do This Mortal Coil. É uma das poucas canções de Tim que Jeff tocou pelos pubs, talvez mais pelo relacionamento que tinha com Liz Fraser, ex-vocalista do Cocteau, do que pela ligação paterna. Além de “Song To The Siren” e “Once I Was”, covers de “Sefronia” e “Sing A Song For You” estão entre as canções de Tim que é possível encontrar pela internet.
6) “All Flowers In Time Bend Towards The Sun”
Os relacionamentos de Jeff Buckley sempre foram especulados pelos fãs após sua morte. Com Liz ele gravou “All Flowers…”, que até hoje não sei se foi lançado em algum disco da cantora. Ele fez outros também covers do Cocteau Twins, mas eles nunca foram lançados em discos oficiais.
5. “Sweet Thing”
Van Morrison poderia ter pedido a guarda de Jeff Buckley quando este ainda era uma criança. Jeff nunca escondeu o fato de que se sentia particularmente ligado mais à carreira de Morrison que a do pai. As versões de “Sweet Thing” e “The Way Young Lovers Do” que estão em Live At Sin-é comprovam que Jeff se sentia a vontade nas canções do velho irlandês ranzinza.
4) “Be Your Husband”
Se Van Morrison seria o pai, Nina Simone pode muito bem ser a mãe. “Lilac Wine”, maravilhosa canção de Grace era do repertorio de Simone. Nina, Dylan, Morrison, Piaf e Nusrat Fateh Ali Khan (a quem Jeff se refere como “meu Elvis” em Live At Sin-é) são os artistas mais influentes na carreira do cantor, que também re-gravou, entre outros, Billie Holliday e Miles Davis. Há uma versão obscura de “Be Your Husband” rolando pela internet que nunca foi lançada, basicamente levada na marcação de compasso e de gaita de boca.
3) “I Shall Be Released”
Não apenas esta, mas também “Farewell Angelina”, “Lost Highway”, “Just Like A Woman”, “Mama You’ve Been On My Mind”, “If You See Her Say Hello”… A lista de covers de Bob Dylan é enorme. A influencia de Robert Allen Zimmermann nas letras de Jeff é tanta que Grace foi encarado como um livro de poesias musicadas por alguns críticos. Você pode achar na internet uma versão de “I Shall Be Released” gravada de um programa de radio, onde músicos no estúdio da estação tocam o clássico de Dylan e The Band enquanto Jeff canta (e toca gaita) pelo telefone. Esta versão nunca foi oficialmente lançada. Uma pena.
2) “Hallelujah”
No começo da carreira, Leornard Cohen competia diretamente com Bob Dylan pelo posto de bardo judeu da América. “Hallelujah” está em Grace e é possivelmente a canção mais conhecida na voz de Jeff Buckley. Também já esteve em trilhas de vários filmes (toca inteira em uma cena de Edukators). Alem das gravações de Jeff e de Cohen, há também o registro mais atual de Rufus Wainwright (incluída trilha sonora de Shrek 2) e a versão da qual todo mundo roubou o instrumental, de John Cale. Jeff admitiu que pegou “emprestado” de Cale. Curiosamente, por causa do refrão tem sido usada como tema religioso por um monte de gente.
1) “I Know It’s Over”
Jeff Buckley personifica o homem cantado por Morrissey nesta que é uma das belas e tristes canções dos Smiths. O relacionamento de altos e baixos com a mãe Mary Guibert, a beleza do cantor (que em 1995 ocupou o 12° lugar na lista das 50 pessoas mais bonitas organizada pela revista People) e a solidão refletida nas suas canções reforçam as frases de uma suposta conversa entre mãe e filho – como o verso “Se você é tão bonito, porque está sozinho está noite?”. O cover de “I Know It’s Over aparece you and I - disco de raridades lançado em 2016 e fecha a coletânea So Real: Songs From Jeff Buckley sem dramas maiores, “eu sei, é o fim”.