Zona do Desconforto
Para um menino morto em 1997.
Ele era o clichê do menino japonês cheio de brinquedos modernos vindos do Japão, videogames legais e muitas horas de atividades preenchidas com estudos, curso de línguas, aula de artes e o que mais coubesse em um etecetera. Sua mãe não era japonesa, era uma mulher que parecia uma estrela de cinema, a Grace Kelly abandonando a arte no auge por um amor. Seu pai era médico e trabalhava no hospital à menos de 100 metros de casa, um luxo subestimado de viver em uma cidade pequena. Ele tratou da minha bronquite durante anos, curada depois de milhões de inalações e varias internações. Eu morava em uma casa que havia sido uma mercearia e que agora as gondolas serviam de divisória dos cômodos e era convidado para frequentar a casa do outro lado da rua e brincar com ele das 17 as 18 horas. As vezes chovia e podíamos brincar um pouco mais.
Ele se parecia muito comigo, tenho fotos que provam, éramos os gordinhos solitários da turma que estavam sempre sorrindo e tropeçando nas fotografias, últimos meninos que eram escolhidos no futebol, os “café com leite” e talvez por isso andávamos juntos. Acho que muito da minha empatia vinha da culpa que sentia por ter ajudado a atirar pedras no portão de sua casa quando os moleques da rua de cima brigaram com os moleques da rua do meio e da rua de baixo na 1º guerra mundial de 1989, que deixou metade do bairro de castigo por um mês inteiro. Nas minhas lembranças sempre penso que foi meu primeiro grande amigo, mesmo não conseguindo lembrar nenhuma afinidade além da rua em que morávamos, das fitas de videogame e dos bonecos dos Comando em Ação que colecionávamos com certa devoção.
(os moleques da rua de cima , da rua do meio e da rua de baixo)
Não lembro quando foi a ultima vez que o vi. Lembro apenas da ultima vez em que fui até sua casa emprestar uma fita de Nintendo, perto do fim do ano de 1995. Já não morávamos perto, já não jogávamos futebol, eu andava com outra turma, tinha uma quase banda. Ele estudava em uma escola particular em um canto da cidade, eu no colégio estadual. Em 1996 fui para um colégio federal em outra cidade, sua família mudou-se para uma cidade do norte do Paraná e foi isso. Nunca mais nos falamos.
A vida seguiu e não pensei nele naquele ano e nem ano seguinte, não pensei em momento algum até receber uma noticia no fim de 1997: havia se enforcado com a corda de um quimono de judô. Não sei o que houve com ele para que tomasse uma decisão extrema. Me disseram que sofria muita pressão, mas eram apenas as fofocas sobrevoando uma cidade pequena, muitos garotos morreram naquele ano e ele foi apenas um destes que todo mundo conhecia. As vezes ainda me pego pensando sobre nossa amizade e não consigo lembrar se em algum dos dias que passamos juntos chegamos a conversar sobre como nos sentíamos sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre o futuro, não tivemos uma música favorita, um filme favorito.
Não lembro, me desculpe, cara.
“Zona do Desconforto”1 - lado B de “o livro da revelação (apocalipse)”
Eu penso em meus brinquedos,
todo o amor e desperdício,
nos dias que não tínhamos nada nem dever de casa pra fazer
e em todos os planos que não conseguimos realizar
penso na chuva que cai lá fora
e nas vezes em que eu rezava pra que ela fosse embora daqui
e eu penso em meus amigos vivos,
as meninas, os meninos,
desejos que o tempo se encarregou de levar
eu penso em todas mentiras que eu inventei
só pra me iludir, me divertir
enquanto os dias passavam
e eu, de costas, tentava não olhar
e eu penso em você
e em todas coisas que eu deveria ter dito
ou não
acho que nunca mais teremos uma nova chance
e um dia perfeito, um dia perfeito
como aqueles que a chuva quis apagar
O titulo é roubado do livro “Zona de Desconforto” de Jonathan Franzen - cuja passagem inspirou o texto e a canção.
“A adolescência devia ser aproveitada sem muito embaraço, mas o embaraço, infelizmente, é o principal dos seus sintomas.
Mesmo quando alguma coisa importante acontece com você, seu coração está sendo despedaçado ou enaltecido e você está totalmente absorvido na construção das fundações de uma personalidade sólida, ocorrem momentos nos quais você percebe que o que está acontecendo não para valer.
A menos que você de fato morra, a história para valer ainda está muito à frente. Só isso, essa mistura cruel de consciência e irrelevância, essa vacuidade incontornável, já bastaria para justificar sua contrariedade.
Você sofre e fica envergonhado quando acha que seus problemas adolescentes não têm importância; quando acha que têm, por outro lado, é uma besta."
Bonito